quarta-feira, maio 31, 2006

cedo

A manhã junto ao cais estava fria. O azul do céu reflectia-se em circulos e linhas não contínuas, dando á água semi transparente um quê de psicadelismo.
A cabeça doeu-me ainda mais quando o silvo da grua irrompeu mesmo por cima do sítio onde eu passava. Café sem açucar devia sortir efeito. De repente os estímulos sonoros começaram a acentuar-se, como se a cidade tivesse começado a funcionar naquele instante- de facto a sensibilidade á dor agudizava-se ao mais pequeno grito de gaivota...
Bebi o café rápidamente. As borras lá no fundo da chávena deviam significar algo... quando ía a sair dei um encontrão numa negra cúzuda, como só as negras são. Não deve ter dado pelas minhas desculpas, já que gritou que “cria meia de reite e um corassante com créme”. E a cabeça num inferno de dor...
Entrei no barco de ligação ao outro lado. Vinha repleto á chegada, mas á ida embarcaram comigo meia duzia de pessoas. Recostei-me no conforto temporário da cadeira que se pareceu acentuar pela ausência dos acotovelamentos da hora de ponta.
Fechando os olhos, deu para perceber melhor o zumbido nos ouvidos. O balanço do barco, que se preparava para abandonar o cais, foi me provocando uma dormência doce que acabou por me alhear do que me rodeava.
Vim a mim rodeado de gente- os viajantes de volta já lotavam o barco na sua totalidade. Os funcionários iam começar a deslocar o portaló, quando o pisei em direcção a terra firme, o que os levou a olharem-me com impaciência.
Olhei o sol de frente. Estava amarelo-pálido por causa da neblina provacada pelas chaminés das fábricas da cintura indústrial que se prolongava ao longo da margem.
Crianças de escola afluiam rápidamente com semblantes ensonados, no momento em que os homens da manutenção da estrada repintavam a passadeira que dava acesso á escola. Repintavam e praguejavam por causa de pegadas brancas que evoluiam para dentro, depois de alguém ter entornado a lata de tinta branca.

segunda-feira, maio 29, 2006


Passamos a vida a mentir, até, sobretudo, talvez apenas, àqueles que amamos. Com efeito, somente esses podem pôr em perigo os nossos prazeres e fazer-nos desejar a sua estima
Proust , Marcel

daí que


A origem da mentira está na imagem idealizada que temos de nós próprios e que desejamos impor aos outros
Nin , Anais

domingo, maio 28, 2006

Está calor



e o céu nublado. Há um silêncio que me transporta para o ambiente que antecedia o deflagrar das tempestades em Àfrica- lembro que de repente, trovões poderosos ribombavam e massas de água caiam, inundando todo o universo...

terça-feira, maio 23, 2006

A barba

  
cresce há três dias e de passagem reparo que o JD está a um polegar do fundo.
O metálico da porta do elevador soou quando se fechou atrás de mim.
A claridade picou-me a vista... ou teria sido a crise de vulgaridade por que passava provocada por falta de criatividade, vácuo mental?
Devia estar com um aspecto gainsbourguiano porque o sorriso luminoso da vizinha, desta vez amareleceu, com o "salut, ça va?" dito sem a convicção do costume.
Segundo as gordas dos jornais do quiosque, nada de significante. A "vida" continuava.
O café sem açucar escaldou-me o estômago. Devo ter dito algo que não me lembro, pois a bar maid olhou-me plo canto do olho.
Atestei. O POS estava off... "depois passo cá", disse.
Enfiei-me a custo no décimo nono itinerário complementar, que de complemento nada tem. A borregada, da qual eu me sentia o carneiro mor, lá ia, obedientemente perfilada e a queimar combustivel, furiosamente... parada.
No rádio, a euforia antecipada pela proximidade de mais um campeonato.
Reparei no cadáver do gato ao pé do separador... apodrecia ali há uns quatro ou cinco dias. Machado Vaz falava de arrebatamentos e folguedos amorosos.
Porra... as artimanhas a que recorremos para silenciar a consciência que teima em nos boicotar...


-Se choras por não ver o Sol, as tuas lágrimas impedir-te-ão de ver as estrelas-

Tagore

segunda-feira, maio 15, 2006

squizo



A noite vai desabando sobre mim.
Debussy toca baixinho na Antena 2.
Olho para a escrita. A solidão é aquela muralha negra com que esbarramos quando queremos respostas, que ela própria elabora.
Somos alpinistas sem equipamento quando queremos transpor os nossos Everests solitários- cada um tem o seu, mais ou menos íngreme.
Somos só nós e a solidão... ou somos apenas nós? Se ela se nos afigura como algo a transpor, logo constitui um ente exterior a nós... mas se é produzida por nós, como se transpõe algo que nos é intimo... o texto está a ir por caminhos esquizóides. A plasticidade do espírito propôe-me um desfecho diferente.

Debussy acabou e do quase silêncio emergente ouvi passos apressados no corredor exterior (?). Dois toques breves. Abri- eram Batman, Robin, Calvin e a Wonder Woman. Perguntaram em unísono um " Então? ", perfeitamente dobrado pela produção que os acompanhava. Tinha-me atrasado. Peguei de rompante na capa que estava no bengaleiro e lá fomos todos no Batmobile a grande velocidade, directo a um crime imaginado plo gajo do script.
Cá atrás iamos encafuados eu, a Super Mulher e o puto, a quem perguntei pelo Hobbes- parece que a mãe o tinha posto na máquina de lavar- numa última tira, tinha caído num lamaçal e estava a secar. No aperto do veículo (claro que não é um utilitário) e da condução espectacular do Batman, Wonder Woman confessava: " I'm feellin lonelly, latelly, you know...". Respondi, "Ok, stay tight...".
Também eles, pensei.

sexta-feira, maio 12, 2006

Ingenuidades

    Temos percursos paralelos e trajectos que se cruzam, emaranhando-se por vezes. A  individualidade é teimosamente mantida, mesmo após os conceitos de tribo esbatidos e gastos. Basta o azedume como referência reinante para que a falta de disponibilidade deixe de ser ocasional e o cinismo impere, refogando os queixumes e as quimeras do cidadão remoto que até é nosso vizinho. Identificamo-lo ocasionalmente. Afinal dividimos a mesma sargeta, somos mordidos por desejos e carências que nos toldam o descernimento, transportamos o mesmo catálogo de vicios que nos chicoteiam a mente e as perspectivas. Só que se tem de individualizar os fragmentos que escorrem no paralelismo habitual... feito " never ending"  maratona , em que nos tocamos, ouvimos, tropeçamos, mas que, por ser imperioso teremos que liderar de qualquer forma. Darwin dixit??


quarta-feira, maio 10, 2006

Rituais


    Repetidos, os rituais cadenciam-se. Sempre iguais, vão amarelecendo como  páginas de um missal enunciador de lenga-lengas que se decoram sob claustros espelhados, que reflectem novamente... o mesmo. E isso transmite segurança... por sabermos o desfecho do filme-  como que alcançamos a imortalidade e a bem aventurança... a euforia, o zen...?


    As alterações da consciência, sejam elas feitas de que maneira forem, proporcionam aquele efeito de puxar de tapete momentãneo. Esmagamos as feições de encontro almofadas que alegre e avisadamente amontoamos ao redor das nossas existências. Mas raramente há sangue saindo do canto da boca ou dos ouvidos.


    O olhar continua vítreo. Para que se torne expressivo, só mesmo com nova alteração de consciência, ou provocada pela sazonalidade ou por uma mesmice anfetamínica, refinadamente hi-tek, a raiar a erosão que o legado depressivo produziu, por causa das quedas de encontro ás esponjas das circunstâncias.